Na última semana, uma declaração da presidente do Banco do Brasil acendeu um alerta no setor agropecuário. Segundo ela, o agronegócio enfrenta a maior inadimplência da história do banco, sendo um dos principais fatores para a expressiva queda de 60% no lucro da instituição no segundo trimestre de 2025.
Embora a inadimplência seja um dado real, a forma como foi exposta cria uma narrativa perigosa: coloca o produtor rural como vilão do sistema financeiro, ignorando os contextos que levam ao endividamento e à busca por recuperação judicial. Trata-se de um discurso que fragiliza ainda mais a imagem do agro, justo no momento em que o setor mais precisa de apoio, estrutura e acesso estratégico a crédito.
Grande parte dos produtores que buscam financiamento são pequenos e médios agricultores, muitos enquadrados nos programas Pronaf e Pronamp. É esse produtor que sustenta a produção de grãos, leite, hortifrúti e carnes, e que precisa de crédito para custear a safra, manter a estrutura da propriedade ou investir em melhorias. Mas, aí vem uma pergunta que parece de resposta óbvia, mas não é o caso e precisamos entender isso para fugirmos de narrativas pejorativas ao setor. E a pergunta é: Por que o produtor rural fica inadimplente?
Essa reflexão perpassa muitas camadas, e, levando em consideração que o setor é formado majoritariamente por pessoas, famílias, que trabalham com seriedade e afinco, chegamos a uma primeira resposta: Agrariedade. Explico: A inadimplência no agro não é fruto de descuido ou falta de responsabilidade. A agrariedade é a característica intrínseca da atividade agrária que a distingue de outras atividades, identificando a sua essência na vinculação a um ciclo biológico para produção de vegetais ou criação de animais, seja através do uso de recursos naturais ou da exploração da terra.
Essencialmente, é o fator que qualifica uma atividade como agrícola, envolvendo a relação homem-terra e o desenvolvimento de um processo biológico que gera frutos e produtos.
Ou seja, a própria natureza da atividade agrária explica em parte sua vulnerabilidade econômica. Como bem destaca Rodolfo Ricardo Carrera, autor da obra “Derecho Agrário, Reforma Agrária y Desarrollo Econômico”, “a atividade agrária caracteriza-se por ser um processo agrobiológico de produção, realizado na terra pela mão do homem. É a indústria genética de produção. Em nenhuma outra atividade industrial, extrativa, de transformação ou de serviços, esse processo teria lugar. É característico da atividade agrária.”
Já Francisco Malta Cardoso entende que “a atividade agrária é representada pelo trabalho da terra para a produção primária de vegetais e animais, indispensáveis ou úteis à vida humana. Só a atividade agrária, segundo ele, permitiria a criação de riqueza. A indústria apenas transforma a riqueza e o comércio a distribui” (ob. cit., v. 1).
Esse caráter biológico, essencial e imprevisível da atividade rural exige condições de financiamento compatíveis e assessoria jurídica preventiva.
Além desse fator tão específico, ainda some-se a ela as oscilações de mercado que afetam os preços de venda, os altos custos de insumos e logística, e, principalmente, a falta de planejamento jurídico e estratégico na contratação do crédito. Sem uma assessoria adequada, muitos produtores assinam contratos com garantias desproporcionais, prazos mal dimensionados ou taxas pouco transparentes, o que aumenta o risco de inadimplência.
As linhas mais buscadas são Pronaf, para agricultores familiares, e Pronamp, para produtores de médio porte. Mas existem outros como, por exemplo, Moderfrota e Inovagro: para investimento em máquinas e inovação. Os requisitos incluem documentação da propriedade, CAR, CCIR, projeto técnico, garantias e regularidade fiscal e essas linhas são a principal forma de acesso a capital produtivo para a maioria dos produtores, que viabilizam o ciclo de produção, garantem a compra de insumos, mão de obra, mecanização e manutenção da atividade no campo.
Só o fato do setor ser responsável por alimentar o país e sustentar a economia já deveria ser o bastante para justificar melhores linhas de crédito, subsídios e abertura para o mercado, mas estamos falando do setor que gera milhões de empregos e que suporta além das intempéries do mercado, problemas de ordem diplomática e até democrática, e ainda tem que levar em consideração a Agrariedade, como já explicado. Por isso, é justo que tenha linhas subsidiadas, taxas diferenciadas e suporte institucional.
É necessário esclarecer que, além dos bancos públicos, o produtor pode buscar recursos em cooperativas de crédito, fintechs especializadas em agro, operações de CPRs e barter, fundos privados e títulos verdes (green bonds), investidores internacionais, que estarão interessados em ESG, sustentabilidade e rastreabilidade. Logo, produtores que têm organização jurídica, gestão de riscos, contratos bem feitos, registro de atividades e conformidade fiscal são vistos com outros olhos por financiadores. Governança não é luxo, é estratégia. E é um critério rigoroso para acesso a crédito.
Para que o produtor rural não fique refém do sistema nacional e de narrativas que têm outros interesses a atender, desde que tenha um planejamento jurídico, transparência e certificações, o produtor pode acessar fundos internacionais que vão desde crédito para agricultura de baixo carbono, créditos de carbono e remuneração por boas práticas até as linhas de financiamento internacionais, que eventualmente terão como pano de fundo exigências ESG. Esses recursos saem do fluxo viciado que o produtor rural muitas vezes é submetido, podem ter juros melhores, menos burocracia e estão cada vez mais abertos a produtores preparados.
O Brasil é um país nutrido e impulsionado pelo agronegócio, mas isso não significa que os bancos públicos são a única alternativa de financiamento. O alerta aqui é que essas narrativas que culpam o produtor rural pela crise financeira de grandes instituições são perigosas porque distorcem a realidade e fragilizam a imagem de um setor essencial.
Estamos em um período crucial para o produtor rural e precisamos refletir a quem interessa esse tipo de narrativa que irresponsável e deliberadamente impõe ao setor os problemas de má gestão e desestruturação interna de uma instituição. É momento de reflexão, e mais que isso, agora é hora de fortalecer o agro por meio do fortalecimento da reputação de suas fazendas, produtores e empresas que compõem toda a cadeia produtiva.
Bibliografia
CARDOZO, Francisco Malta. Tratado de Direito Rural Brasileiro, 3 volumes, Ed. Saraiva, 1956.
CARROZZA, Antônio. Problemi generali e profili di qualificazioni dei Diritto Agrário, Milano, Giuffrè, 1975.